Sem sal

Batom cor de boca. Mais uma vez. Olhava para o espelho e não sabia se gostava do que via refletido. Os anos haviam passado para ela. A pele perdera o viço de 20 anos atrás. Prendeu o cabelo -- preto e que ganhava fios brancos a cada dia -- num caprichoso rabo de cavalo, ajeitou os brincos, conferiu a roupa de ginástica.

Passou pelo quarto dos gêmeos, antes de dar um beijo no marido e avisar: "vou correr, o café está na mesa".

Saiu do prédio na avenida Higienópolis dando bom dia ao porteiro que respondeu com um aceno de cabeça e seu sorriso discreto. A avenida cheia de árvores sempre lhe dava uma sensação de amplitude, de espaço, algo tão escasso na selva de pedra que escolhera como lar quando se casara há dez anos.

Seguiu até a Angélica, observando a família ortodoxa que passava provavelmente em direção à sinagoga. Ainda era cedo. Só com uma boa dose de fé para enfrentar o frio naquele domingo.

E ela? Tinha fé em que àquela altura da vida?

Em vez de subir em direção à praça, para correr, ela desceu rumo ao Minhocão. Não conseguiria evitar. Apertou o passo, como se estivesse sendo seguida. Nem olhou para os lados, tamanha a culpa. Só queria chegar logo e, mais uma vez, aplacar aquele vazio sem motivo.

Tropeçou algumas vezes na descida. O vento frio queimava de fora para dentro. A angústia se encarregava do mesmo numa estranha contra-mão. Por quê?

Por que não estava feliz? Tinha, supostamente, cumprido todos os planos. Formou-se, casou-se, procriou-se. E, depois de anos, havia voltado à antiga forma física, de quando nem sabia que era gostosa. Lembrava até hoje da bronca do primeiro namorado quando a viu com uma roupa mais justa, uma blusa que denunciava ao mesmo tempo seu colo, seus seios e  sua cintura. Na época não entendeu, mas por alguma razão a memória gravou a mensagem que foi decifrada somente anos depois.

Ana já não sabia quem andava mais depressa. Os passos se atropelavam e a levavam para longe - só teria coragem de fazwer aquilo tudo de novo se fosse bem longe de casa. O sufoco no peito parecia lembrar que não havia futuro para ela. O aperto no estômago pedia que ela andasse mais depressa.

Olhou para si. Roupa patética. Tudo era cinza - calça, blusa, meia, sapatos. Quando ela havia perdido as cores? Já não sabia dizer. Perdera-se de si. E agora não sabia mais o que fazer. Não havia como voltar para casa e virar outra pessoa. O acúmulo das tarefas profissionais e sociais a impediam de um respiro qualquer. Além da falta de tempo, ainda havia a preocupação constante com  a aprovação do marido.

Já havia alcançado o Parque da Água Branca e aquela sensação boa proporcionada pela endorfina não era o bastante para dissuadi-la, para conter seu desejo. Não tinha jeito. Ou melhor, o jeito era aplacar aquilo tudo (que nem sabia mais o que era). Passou o Parque e se embrenhou por uma das ruas laterais. Caminhou mais um pouco e encontrou.

Entrou no boteco sujo - o cenário condizia com a sua sensação moral. Maldita culpa cristã. Sentou no balcão quase ofegante. Atraiu o olhar do homem que bebia um refrigerante de limão, com uma dose de destilado ao lado. Sentiu-se descabelada, com os pensamentos fora do lugar.

Dane-se, pensou.

Pediu um x-tudo. Devorou-o em minutos. Pagou R$ 12 pelo seu pecado.

Sentiu nojo de si mesma e correu ao banheiro. Forçou até colocar para fora tudo o que havia consumido. Sentiu ainda mais nojo. Os odores do sanitário coletivo misturados ao que acabara de botar para fora descreviam bem sua auto-imagem. Era repugnante.

Chorou. Muito. Soluçava ainda mais quando pensava nas crianças. O gosto das lágrimas, o gosto do vômito. Era o sabor da derrota. A essa altura estava sentada sobre a privada e sentia como se todos os ouvidos estivessem a par do que ela estava fazendo.

Não se sabe quanto tempo Ana havia ficado lá dentro. Quando saiu, o semblante era plácido. Os cabelos controladamente presos em um rabo de cavalo. E na boca, batom. Cor de boca. Mais uma vez.

PS: queria u´a imagem pro post. e o google images me trouxe essa ilustra - a capa de um disco de uma banda japa, cuja música de trabalho se chama "one way".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Pai

Escorre, acumula, transborda

Das relações do Estado democrático de direito